quarta-feira, 13 de março de 2013

Narrativas Transmidia


Uma proposta de narrativa transmedia procura colocar a audiência/fã inserido no projeto por meio de diferentes pontos de acesso, criando uma experiência interativa, imersiva e participativa. O conteúdo deverá permitir ao espectador/fã se sentir como parte da proposta, influenciando na elaboração e desenvolvimento das ações (da história).

Segundo Jenkins, uma narrativa transmedia se desenvolve através de múltiplos suportes midiáticos, contribuindo para o entendimento e desdobramento do todo. Na narrativa transmidiática cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia, deve ser autônomo, para que não seja, por exemplo, necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa.

A partir dos levantamentos e dos estudos realizados sobre a temática, considerando os pressupostos para a definição de uma proposta na perspectiva de uma narrativa transmedia, apresento “Tron Legacy”, lançado em 2010, que é a continuação do filme Tron, de 1982. Além do Game “Tron Evolution”, que conta a história entre o primeiro e o segundo filme, teve a produção de um ARG que dá indícios do enredo do segundo filme, além de e-books que constroem o universo e mostram mais detalhes sobre a história, o universo e os personagens.

Quanto aos princípios da narrativa transmedia:

Potencial de Compartilhamento X Profundidade: não se trata de uma característica forte da produção, mas com um número considerável de fãs, a proposta de continuidade da primeira edição, com a ampliação e diversificação dos suportes, os resultados são relativamente positivos;

Continuidade X Multiplicidade: existe plausibilidade nos conteúdos, mas foram acrescentados versões para os personagens, além de novos personagens, e universos paralelos para o encadeamento e desenvolvimento da história;

Imersão x Extração: como se trata de uma franquia da Disney, foram criados no parque temático da Flórida diversos ambientes e dispositivos inspirados no filme, reproduzindo efeitos, ambientes e personagens. Além de diversos produtos que pode ser adquiridos com as temáticas da produção;

Construção de Universos: são apresentadas extensões que oferecem descrições ricas do universo onde a narrativa principal se desenvolve;

Serialidade: além de estar dividido em duas partes principais, a franquia apresenta núcleos narrativos no ARG e uma série de animação para a televisão, onde os autores procuram apresentar acontecimentos entre a primeira e a segunda partes do filme;

Subjetividade: conta com narrativas realizadas pelos personagens em dimensões fora do ambiente principal onde a história se desenvolve;

Performance: diversos fâs procuram espaços para realizar performances, além de muitas manifestações na internet.

Ponderações...

Os diversos filmes de animação, principalmente voltados para as crianças (Toy Story, Carros, A Era do Gelo, Alvin e os esquilos, Ben 10, etc.), não são necessariamente exemplos de narrativas transmedia, no entanto, gostaria de tratar brevemente essa questão que está diretamente relacionada às abordagens de Jenkins sobre convergência cultural numa perspectiva econômica.

De certa forma, acredito que a atual geração, que nasceu na cultura da convergência, que vivencia essa condição de narrativas que não ficam restritas a um formato específico de meios e suportes, talvez tenham (ou terão) dificuldades em simplesmente se verem como expectadores (no cinema, na televisão, no computador, nos dispositivos móveis...) sem ter a possibilidade ou oportunidade de uma “interação/imersão” com as histórias, com os personagens e as tramas elaboradas e desenvolvidas. Existe, nesse sentido, uma relação estreita com as argumentações de Prensky sobre o conceito de “nativos digitais”. Trata-se de uma geração que possui a fluência desse novo contexto sócio-técnico-cultural, o que acaba resultando em conflitos com a geração dos “migrantes digitais” (nascidos antes da década de 1980, segundo o referido autor) por terem um tipo de relação com a “realidade” ou com a “cultura” essencialmente intermediado pelas tecnologias digitais. Ou seja, como nos exemplos trazidos pelos colegas para essa atividade, a maioria das produções não ficam restritas a um suporte, a um formato (como estamos constatando em narrativas transmidiáticas), ou são releituras/desdobramentos de “histórias” criações e apresentadas anteriormente através de livros, revistas, gibis, jogos, etc., ou são criações inéditas que “migram” para outras formas de “exibição/exploração/comercialização” - livros, revistas, jogos, games, materiais diversos para consumo (camisetas, bolas, cadernos, mochilas, etc.).

Isso será uma prática cada vez mais intensificada por uma indústria cultural (sem querer ignorar ou sustentar o anacronismo e/ou necessidade de novas perspectivas para o termo) ainda mais potente e sem limites, onde a maioria das pessoas continuarão consumindo sem perceber e, ao mesmo tempo, exigindo que seja assim? Entendo que esta questão está relacionada com argumentações de Jenkins sobre a cultura da convergência que amplia o poder da mídia de massa e que vivemos a busca por novas experiências de entretenimento.

No entanto, podemos analisar por outro ângulo. A cultura do entretenimento digital altera nossas formas de lidar e de desenvolver certas ações, principalmente em relação às práticas já estabelecidas e consolidadas em nossa cultura. Essas novas dinâmicas sócio-culturais podem estar preparando as novas gerações para um “outro” mundo, para novos procedimentos e práticas mais pertinentes diante de uma quantidade cada vez maior de informações, contribuindo para o desenvolvimento de competências mais adequadas para a operacionalização de dispositivos de todas as formas e que estarão presentes em todos os lugares.

Uma questão que considero importante é saber se e como será possível identificar o que de fato poderá contribuir para ampliação da nossa capacidade crítica e efetivamente participativa na construção de uma sociedade melhor.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Cibercultura e Cultura da Convergência: por uma cultura participativa!?


Analisando a configuração atual da nossa sociedade, é inevitável não questionar sobre as relações e influências diretas e indiretas das tecnologias digitais nas vidas de todos nos, sobre o nosso posicionamento e as nossas condições frente a esta conjuntura social, denominado por alguns estudiosos de “Cibercultura”, ou seja, frente a um conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores, que se desenvolvem juntamente com o crescimento das tecnologias digitais de informação e comunicação, mas principalmente pelo acesso e expansão da internet (LEVY, 1999).
Dispositivos e inúmeros softwares e aplicativos das tecnologias digitais de informação e comunicação, em especial a partir da WEB 2.0, vêm influenciando e determinando (re)configurações no âmbito social e cultural.
A sociedade da informação é uma realidade mundial. A Internet já é uma realidade mundial, interligando todos os países do planeta, os telefones celulares estão em franca expansão, os serviços de governo eletrônico são implementados ao redor do mundo, comunidades e redes sociais nascem com as ferramentas sociais da Web 2.0, formas de ativismo político e protestos emergem utilizando as tecnologias e redes informacionais como suporte... O mundo da cibercultura está longe de ser uma utopia, e o futuro aponta para o desafio de uma ciberdemocracia global. (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 23)
Ainda que grande parte da população não se encontre contemplada com acesso direto e significativo aos avanços tecnológicos, nos encontramos inseridos na “Cultura Digital”, e a elaboração de dispositivos equitativos comprometidos com a inclusão digital da população deve representar um aspecto chave nas políticas voltadas para o conhecimento crítico e o acesso qualitativo às tecnologias digitais.
Lemos e Lévy (2010) ponderam sobre a atual condição ou situação da sociedade a partir do uso e avanços da internet, assim como suas implicações diante dos recursos e movimentos proporcionados com a Web 2.0. Entendem que a computação social aumenta as possibilidades da Inteligência Coletiva, que apontam para uma sociedade mais livre e democrática. No entanto, isto implica em ações voltadas para a ampliação do acesso à população aos dispositivos e recursos que resultaria em uma possível “evolução cultural”.
De acordo com Castells (2000) vivemos em um mundo digital. As transformações tecnológicas estão se expandindo pela capacidade de criar interfaces a partir de linguagens digitais. Para esse autor, o desenvolvimento científico e tecnológico é elemento fundamental para o nosso progresso.
Diante desse cenário, acreditamos que a evolução contemporânea do acesso às tecnologias, da liberdade de expressão no ciberespaço e das diversas ferramentas interativas, participativas e colaborativas da Web, representa ou pode representar profundas possibilidades para o efetivo desenvolvimento de uma sociedade mais crítica, democrática e equitativa.
Para isso, é fundamental que tenhamos a compreensão das mudanças que vivenciamos com a reconfiguração na esfera comunicacional para que possamos perceber a irreversível necessidade de termos todos os membros da sociedade inseridos nessa dinâmica.
O entendimento dos aspectos relacionados à cibercultura, dos princípios que norteiam a contemporaneidade com a apropriação das tecnologias digitais, pode representar um caminho promissor nas mudanças que estão ocorrendo e que deverão continuar nos próximos anos. Para além de um conhecimento puramente técnico, operacional, a consciência acerca dos fundamentos dessa cultura digital é que poderá proporcionar uma transformação social voltada para uma participação efetiva e qualitativa de todos.
A cibercultura tem como princípios a “liberação da palavra”, “a conexão e a conversação mundial” e “a reconfiguração social, cultural e política”. Está voltada para um processo de emancipação social, em direção a uma democracia planetária (LEMOS; LÉVY, 2010).
A liberação da palavra seria a diversificação das vozes a partir da conexão em rede, a liberdade de expressão e a livre comunicação permitindo a troca de informação entre pessoas e comunidades, o que resulta na “liberação da emissão”.
A transformação da esfera midiática pela liberação da palavra se dá com o surgimento de funções comunicativas pós-massivas que permitem a qualquer pessoa, e não apenas empresas de comunicação, consumir, produzir e distribuir informação sob qualquer formato em tempo real e para qualquer lugar do mundo. (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 25)
O princípio da conexão e da conversação mundial, denominado por Lévy (1999) de “inteligência coletiva”, emerge a partir da liberação da palavra. Esse princípio criaria uma “interconexão planetária”, resultando em manifestações coletivas ao mesmo tempo local e global.
A partir dessas mudanças, temos a reconfiguração das estruturas sociais, com uma maior participação das pessoas no acesso, na produção e distribuição de conteúdos, assim como nos processos comunicacionais (LEMOS, 2003). Não se trata de substituição, mas de uma transformação com formas diversificadas de acesso e uso dos dispositivos e recursos disponíveis com as tecnologias digitais.
Há, portanto, uma reconfiguração do sistema infocomunicacional global, onde, pela primeira vez, aparecem dos sistemas em retroalimentação e conflito: os sistemas infocomunicacionais massivo e pós-massivo. Na estrutura massiva do controle de emissão – a industria cultural clássica – a informação flui de um polo controlado para as massas (os receptores). Com o surgimento e expansão do ciberespaço, esse modelo está sendo tensionado pela emergência de função pós-massiva. Aqui a liberação da emissão não é apenas liberar a palavra no sentido de uma produção individual, mas colocar em marcha uma produção que se estabelece como circulação e conversação. (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 26)
Os três princípios da cibercultura contribuem com pensamentos e atitudes em um formato colaborativo, plural e aberto. A produção, distribuição e compartilhamento de informações de forma ampla e consistente permitirá o desenvolvimento de uma sociedade mais inteligente e politicamente consciente. Conforme afirma Lemos (2003), podemos aproveitar a potência que essas tecnologias nos oferecem para produzir conteúdo, para compartilhar informação, o que permitiria enriquecer a cultura e modificar o fazer político, principalmente em países como o Brasil.
O objetivo é utilizar o potencial das ferramentas comunicacionais digitais para expressão livre dos movimentos sociais e das articulações e reivindicações político-ativistas. O que está em jogo é o alcance planetário para questões locais; a livre expressão para publicação de informações; a colaboração e participação; a inclusão digital. (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 28)
            Ou seja, a inclusão digital é um pressuposto e um ação de relevância fundamental para as conquistas e perspectivas que se apresentam a partir desse cenário da cibercultura, de conhecimento, participação e envolvimento coletivo da sociedade nas transformações políticas, culturais e sociais. O desenvolvimento efetivo de uma cultura voltada para a participação (cultura participativa).

Este contexto e os pressupostos apontados por Lemos a partir da Cibercultura estão diretamente relacionados com a Cultura da Convergência desenvolvida por Jenkins. “Convergência, de acordo com Jenkins, ocorre ´dentro dos cérebros´ dos consumidores e ´através de suas interações sociais com os outros´.  Assim como os fluxos de informação através de diferentes canais de mídia, para fazer nossas vidas, trabalho, fantasias, relacionamentos, e assim por diante.” (NAVARRO. 2010)

A atual concepção de convergência para Jenkins não é simplesmente tecnológica, mas essencialmente cultural, que vem promovendo impactos e grandes mudanças (ou necessidades de mudanças) na estética, no conhecimento e na educação, na política e na economia. A cultura de convergência para além de consolidar o poder dos produtores de mídia, permite uma maior participação e envolvimento dos “consumidores”, que cada vez mais ampliam as capacidades de autonomia e conhecimento, exigindo novas posturas dos produtores.

Os consumidores de conteúdos de mídia, de acordo com Jenkins, são agentes criativos que ajudam a definir a forma como os conteúdos de mídia são utilizados. A Convergência de mídias, por permitir maior acesso à cultura em geral, ampliou a possibilidade de participação das pessoas, no entanto, o acesso às tecnologias ainda é desigual.

Jenkins demonstra grade preocupação com a desigualdade no acesso à tecnologia, assim como a desigualdade nas formas de apropriação e utilização dos recursos e dispositivos tecnológicos, o que resulta na exclusão da cultura de participação. Por outro lado, se mostra entusiasmado com o potencial para diversificar o conteúdo da nossa cultura e democratizar o acesso aos meios de comunicação. O que pode representar uma expansão significativa do potencial criativo da nossa sociedade.

Para Jenkins, toda nova tecnologia abre ricas possibilidades para a comunicação humana e para a expansão de formas significativas das nossas capacidades cognitivas. Mas também implica em perdas de algumas técnicas que até então são valorosas e amplamente utilizadas. O autor afirma que os avanços das tecnologias digitais irão promover uma drástica expansão da nossa capacidade de criar, de aprender e de se organizar. A questão que teremos que enfrentar é como equilibrar (conciliar) as novas habilidades com as virtudes e práticas importantes de outros tempos.

A inteligência coletiva, segundo Jenkins, pode representar uma maneira de avançar sobre a necessidade contemporânea de termos uma cultura de experiências diversificadas e de múltiplas formas de conhecimento, pois é impossível para alguém conseguir assimilar e saber sobre tudo diante do excesso de informações das novas mídias. É fundamental que nossos estudantes tenham uma formação voltada para o pensamento crítico, que possa aprimorar mecanismos que permitam selecionar o que de fato é relevante e trabalhar coletivamente, de aprender uns com os outros. Somente coletivamente será possível lidar com problemas complexos que vão muito além das competências individuais.

Referências
CASTELLS, M. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A Sociedade em rede. São Paulo :  Paz e Terra, 2000.  v. 1
LEMOS, A. Cibercultura: alguns pontos para compreender a época.  In LEMOS, A. & CUNHA, P. (orgs), Olhares sobre a cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2003.
LEMOS, A.; LÉVY, P. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia. São Paulo: Paulus, 2010.
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
NAVARRO, V. Sites of Convergence: An Interview for Brazillian Academics. 2010 - Disponível em <http://br-mg5.mail.yahoo.com/neo/launch?.rand=eff36oe1nm53p#mail>  acesso em 01 de fevereiro de 2013.
JENKINS, H. Welcome to Convergence Culture. 2006 – Disponível em <http://henryjenkins.org/2006/06/welcome_to_convergence_culture.html> - acesso em 31 de janeiro de 2013.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Máquinas de imagens: uma questão de linha geral

Philippe Dubois

O que são as máquinas semióticas e como elas intermedeiam as nossas relações sociais e as nossas representações de mundo?
As máquinas semióticas (símbolos) são dedicadas à tarefa de representação, com possibilidades para o processamento e produção de signos. Enquanto instrumentos (technè) promovem a intermediação entre o homem e o mundo no processo de construção simbólica.
De acordo com as abordagens desenvolvidas por Dubois (2004), as máquinas, principalmente a partir do século XIX, vão modificar nossa relação com a realidade através de processos de captura, de prefiguração, de organização da nossa visão (câmara escura); de produção de imagens, de inscrição (fotografia); de visualização, recepção do objeto visual, de contemplação (cinematógrafo); de transmissão e difusão de imagens (televisão/vídeo); de síntese, de virtualização da imagem (imagem informática). As máquinas passaram (ainda passam) por uma sequência espiral de evolução, interferindo decisivamente na cadeia de produção da imagem. Essa evolução não representa simplesmente um novo estrato suplementar em cada etapa (momento), formam um “circuito de representação”, em especial com a informática.

“A expressão ´novas tecnologias´ no domínio das imagens nos remete hoje a instrumentos técnicos que vêm da informática e permitem a fabricação de objetos visuais. Uma perspectiva histórica elementar mostra claramente, porém, que não foi preciso esperar o advento do computador para se engendrar imagens sobre bases tecnológicas” (p. 31).
“... o termo technè corresponde estritamente ao sentido aristotélico da palavra arte, que designava não as ´belas-artes´ (acepção moderna da palavra, que surge no século XVIII), mas todo procedimento de fabricação segundo regras determinadas e resultante na produção de objetos belos ou utilitários” (p. 32).
“A technè é então, antes de mais nada, uma arte do fazer humano” (p. 33).
De acordo com Dubois (2004), “produtos tecnológicos”, compreendidos aqui como “máquinas de imagens”, exigem, desde os registros humanos nas cavernas do período paleolítico, dispositivos técnicos de base constituídos de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo).
Analisando parte da linha histórica das tecnologias da imagem, o autor faz uma abordagem de “quatro entre as ´últimas tecnologias´ que surgiram e sucederam de dois séculos para cá e introduziram uma dimensão ´máquinica´ crescente no seu dispositivo, reivindicando sempre uma forma inovadora” (p. 33). São elas: a fotografia; o cinematógrafo; a televisão/vídeo; e a imagem informática.
“Cada uma destas ´máquinas de imagem´ encarna uma tecnologia e se apresenta como uma intervenção de certo modo radical em relação às precedentes. A técnica e a estética nelas se imbricam, dando lugar a ambiguidades e confusões deliberadamente cultivadas, que tentarei deslindar aqui ao máximo” (p. 33).

A Novidade como Efeito de Discurso
De acordo com Dubois, a “novidade” associada à questão da tecnologia funciona como um efeito de linguagem, de tanto ser alardeada em cada momento de forma recorrente como uma “intenção revolucionária”. E que esse discurso de inovação se apoia numa retórica e numa ideologia.
“... todos esses discursos do novo traduzem um hiato completo entre, de um lado, uma ideologia voluntarista da ruptura franca e do progresso cego (que deriva do mais puro intencionalismo) e, de outro, uma realidade dos objetos tecnológicos, que procede do pragmatismo mais elementar. Esse hiato fica patente na constatação de que cada tecnologia produz, na realidade dos fatos, imagens que tendem a funcionar esteticamente quase ao contrário do que pretendem os discursos das intenções (tecnicamente ´revolucionários´)” (p. 35).
O autor apresenta “três fios” que permitem uma abordagem mais precisa de três problemáticas da “estética de representação”, o que possibilita a observação como as diferentes máquinas de imagens das últimas tecnologias tecem variações numa modulação continua de uma a outra. Os eixos, numa concepção “dialética conceitual entre dois polos antagônicos”, são: “maquinismo-humanismo”, “semelhança-dessemelhança” e “materialismo-imaterialidade da imagem” (p. 35-36).

A questão maquinismo-humanismo (o lugar do Real e do Sujeito)
“... a máquina, neste estágio (pensemos na câmara escura, por exemplo), é uma máquina puramente óptica, de pré-figuração, e intervém antes da constituição propriamente dita da imagem (da qual funciona como uma condição previa)” (p. 36).
“São como próteses para o olho, não são operadores de inscrição. Esta, que produz propriamente a imagem, continua se exercendo unicamente pela intervenção gestual do pintor ou desenhista” (p. 37).
“... o que aparece claramente também desde este estágio, é que as máquinas, enquanto instrumento (technè), são intermediários que vêm se inserir entre o homem e o mundo no sistema de construção simbólica que é o princípio mesmo da representação” (p. 38).
“... o advento da imagem fotográfica, no início do século XIX, vai dispor em novo patamar a maquinização da figura, estendendo sua intervenção à segunda fase do processo. A máquina, agora, não se limitará a captar, prefigurar ou organizar a visão (esta fase já está assegurada e não se perderá tão cedo, a câmara escura permanecerá a base de três dos quatro outros sistemas), mas produzirá, justamente, a inscrição propriamente dita.” (p. 38).
“A ´máquina´ intervém aqui, portanto, no coração mesmo do processo de constituição da imagem, que aparece assim como representação quase ´automática´, ´objetiva´, ´sine manu facta´ (acheiro-poiète). O gesto humano passa a ser um gesto mais de condução da máquina do que de figuração direta” (p. 38).
“... à esta tendência à ´desumanização´ do dispositivo de fabricação das imagens, vai se atribuir cada vez mais uma dimensão axiológica, vendo-se nela uma ´perda de artisticidade´” (p. 42).
“... a evolução do maquinico (a história das tecnologias) e o problema do humanismo ou da artisticidade (questão estética) são duas coisas bem diferentes: o desenvolvimento daquela não tem necessariamente como correlato a regressão destes” (p. 43).
“... com o surgimento do cinematógrafo no final do século XIX, o avanço do maquinismo cumpre uma etapa suplementar: desta vez, é uma terceira fase do dispositivo que se tornará ´máquinico´: a fase da visualização. Uma máquina de ordem três vem assim se acrescentar às duas outras. (...) uma máquina de recepção do objeto visual: com efeito, só se pode ver as imagens do cinema por intermédio das máquinas, isto é, no e pelo fenômeno da projeção” (p. 43).
“... se o maquinismo ganha nela um estrato a mais no sistema geral das imagens, isto não resulta numa perda acentuada de aura ou artisticidade. Pelo contrário, podemos mesmo considerar que a maquinaria cinematográfica é em seu conjunto produtora de imaginário (dai provavelmente a singularidade exemplar e a força incomparável do cinema). (...) Sua maquinaria é não só produtora de imagens como também geradora de afetos, e dotada de um fantástico poder sobre o imaginário dos espectadores. A máquina do cinema reintroduz assim o Sujeito na imagem, mas desta vez do lado do espectador e do seu investimento imaginário, não do lado da assinatura do artista” (p. 44).
“... vemos assim que a questão da relação maquinismo-humanismo é menos histórica na progressão contínua (cada vez mais máquina para menos humanidade) do que filosófica na tensão dialética que sempre varia, mas não linearmente. (,,,) A dialética entre estes dois polos, sempre elástica, constitui o aspecto propriamente inventivo dos dispositivos, em que o estético e o tecnológico podem se encontrar” (p. 45).
“... em menos de um século, toda a cadeia de produção da imagem (pré-visão, inscrição, pós-contemplação) se tornou assim progressivamente ´máquinica´, cada nova máquina não suprimindo as precedentes (estamos longe da lógica da tábua rasa), mas vindo se acrescentar a elas, como um estrato tecnológico suplementar, como uma volta a mais numa espiral” (p. 45).
A indústria tecnológica ganhará cada vez mais terreno...
“Com o advento e a instalação progressiva da televisão e depois do vídeo (que se estende por muito tempo, ocupando praticamente toda a primeira metade do século XX), uma espécie de quarto estrato máquinico vem se superpor aos três outros. O que especifica a maquinaria televisual e a transmissão. Uma transmissão a distância, ao vivo e multiplicada” (p. 46).
“A imagens televisual não é algo que se possua como um objeto pessoal nem algo que se projete num espaço fechado (como a ´bolha´ da sala escura do cinema); ela é transmitida para todo lugar ao mesmo tempo. (...) A imagem-tela ao vivo da televisão, que não tem mais nada de souvenir (pois não tem passado), agora viaja, circula, se propaga, sempre no presente, onde quer que seja. Ela transita, passa por diversas transformações, flui como um rio sem fim” (p. 46).
“... a televisão, no fundo, transformou o espectador – que no anonimato da sala escura tinha ao menos uma forte identidade imaginária – numa espécie de fantasma indiferenciado, de tal modo disseminado na luz do mundo que se tornou totalmente transparente e invisível, e deixou de existir como tal. Agora, ele é no máximo um número, um alvo, uma taxa de audiência: uma onipresença fictícia, sem corpo, sem identidade e sem consciência (...) não há mais relação intensiva, só nos resta o extensivo, não há mais Comunhão, só nos resta a Comunicação” (p. 46-47).
“Enfim, depois das maquinarias de projeção e de transmissão, que expandiram no tempo e no espaço a visualização e a difusão da imagem, uma ´última tecnologia´ veio completar a panóplia neste último quarto do século XX, e seu impacto histórico parece (pelo menos) tão importante quanto o das invenções precedentes. Trata-se da imagem informática, também chamada de imagem de síntese, infografia, imagem digital, virtual, etc. A maquinaria que se introduz aqui é extrema. (...) com a imagem informática, pode-se dizer que é o próprio ´Real´ (o referente originário) que se torna maquínico, pois é gerado por computador. (...) Não há mais necessidade destes instrumentos de captação e reprodução, pois de agora em diante o próprio objeto a se ´representar´ pertence à ordem das máquinas. Ele é gerado pelo programa de computador, e não existe fora dele. É o programa que o cria, forja e modela o seu gosto. È uma máquina de ordem cinco (que retoma as outras no seu pondo de origem), não de reprodução, mas de concepção. Até então, os outros sistemas pressupunham todos a existência de um Real em si e para si, exterior e prévio, que cabia às máquinas de imagem reproduzir. Com a imagerie informática, isto não é mais necessário: a própria máquina pode produzir seu ´Real´, que é a sua imagem mesma. Dito de outro modo, os dois extremos do processo (o objeto e a imagem, a fonte e o resultado) se encontram aqui para se tornarem uma coisa só, provocando uma confusão por colisão, uma catástrofe (de acordo com René Thom e sua teoria da catástrofe)” (p. 47).
“O próprio mundo se tornou máquinico, isto é, imagem, como numa espiral insana. A realidade passa a ser chamada de ´virtual´” (p. 48).
“Não só não há mais ´Real` (nem ´representação´ portanto), como também podemos dizer que não haja mais imagens. A chamada imagem de síntese, em certo sentido, não existe: a síntese é apenas um conjunto possível (o programa) cuja atualização visual é um simples acidente, sem objeto real. (...) a síntese não seria assim nada mais do que sonham todos os fotógrafos à espera da Revelação. A única diferença é que, agora, esta imagem virtual não passa de uma das soluções pré-vistas do programa” (p. 48-49).

A questão semelhança-dessemelhança
“Uma outra perspectiva de conjunto sobre a história das máquinas de imagem, uma outra ´linha geral´ que eu gostaria de seguir é a da velha questão da semelhança (e seu reverso: a desemelhança). (...) assim como, à medida que o sistema de imagens se sucediam no tempo, o maquinismo parecia crescer em detrimento             da presença e das intervenções humanas (...) poderíamos pensar, à primeira vista, que o encadeamento das tecnologias da imagem caminhava unilateralmente em um aumento constante do grau de analogia e, portanto, das capacidades de reprodução mimética do mundo, como se cada invenção técnica pretendesse necessariamente aumentar a impressão de realidade da representação. Veremos porem que esta aparente  teleologia também se revela enganosa e que, de fato, a cada momento da história dos dispositivos, a tensão dialética entre semelhança e dessemelhança reaparece – e independentemente dos dados tecnológicos, pois a questão em jogo é estética” (p. 49).
“Com o desenvolvimento espetacular da imagem fotográfica, o ganho de realismo na imagem aparecerá como imediato e todos o proclamarão. (...) À comodidade e à prontidão do procedimento, a fotografia acrescentaria uma terceira vantagem, a ´exatidão´. Precisão dos detalhes, nitidez dos contornos, gradação fiel das cores e, sobretudo, ´verdade das formas´. Em última análise, o ganho de analogia trazido pela fotografia seria de ordem não só óptica, como também (e mais essencialmente) ontológica. Seria uma questão de verdade da imagem” (p. 50).
Houve uma transição de um efeito de realismo, das pinturas, para um efeito de realidade, da fotografia “(da ordem da estética da mimese). Se o primeiro encara os dados em termos de semelhanças, o segundo o faz em termos de existência e de essência. E paradoxalmente, o deslocamento que assim se opera permite concluir que na postura ontológico-fenomenológica, a semelhança deixa de ser um critério pertinente...”  (p. 51).
“Quando o cinematógrafo se instala, um novo ´suplemento de analogia´ imediatamente surge: o realismo cinematográfico          acrescenta ao realismo do vestígio fotoquímico o da reprodução do movimento, que é um realismo do tempo” (...) Mesmo que sob uma forma ilusória, que nos engana com nosso próprio consentimento e prazer, a mimese fílmica expõe o mundo em sua duração e em seus movimentos (p. 51-52).
“... com o circuito eletrônico da imagem do vídeo, não só vemos a imagem do mundo em movimento (tal como ele se move em sua duração própria), como também a vemos ao vivo. É a mimese do ´tempo real´: o tempo eletrônico da imagem é (sincronizado com) o tempo do Real. O realismo da simultaneidade vem se acrescentar ao do movimento para formar uma imagem que nos parece cada vez mais próxima e decalcada no real, a ponto de gerar por vezes confusão” (p. 52).
“Tempo durativo, tempo real, tempo contínuo, a imagem-movimento do cinema e da televisão/vídeo parece assim levar o mimetismo e a reprodução do mundo ao seu extremo, até o absurdo...” (p. 53).
Com a imagem informática: “A partir do momento em que a máquina deixa de reproduzir para gerar seu próprio real (que é a sua imagem mesma), é claro que a relação de semelhança perde um pouco o sentido, pois já não há mais representação nem referente. (...) não é mais a imagem que imita do mundo, é o ´real´ que passa a se assemelhar à imagem, Na verdade, trata-se de uma espiral infinita, uma analogia circular, como uma serpente que morde a própria cauda” (p. 53).
“É provavelmente por isso que a maior parte das imagens de síntese, apesar de poder inventar figuras visuais totalmente inéditas e nunca vistas, esforça-se ao contrário para reproduzir imagens já disponíveis, objetos já conhecido do mundo. Elas apostam na semelhança (mesmo que falseada ou forçada), não tanto para mostrar que podem ´fazer tudo´, mas porque não sabem mais o que fazer (o que seja diferente) (p. 53).
“... a questão da semelhança não é uma questão técnica, mas estéticas. Assim, se o analogismo encontrou nos diversos sistemas de representação anteriormente evocados um terreno aparentemente propício à sua expansão, cabe notar porem que isto concerne apenas a certa forma de figuração – parcial, ainda que semelhante. (...) Toda representação implica sempre, de uma maneira ou de outra, uma dosagem entre semelhança e dessemelhança. E a história estética das máquinas de imagens, esse traçado de linhas gerais, é feita de sutis equilíbrios entre esses dados” (p. 54).
“... a dimensão mimética da imagem corresponde a um problema de ordem estética, e não é sobredeterminada pelo dispositivo tecnológico em si mesmo. Todo dispositivo tecnológico pode, com seus próprios meios, jogar com a dialética entre semelhança e dessemelhança, analogia e desfiguração, forma e informe. A bem da verdade, é exatamente este jogo diferencial e modulável que a condição da verdadeira invenção em matéria de imagem: a invenção essencial é sempre estética e nunca ética” (p. 57).
Podemos dizer que a pintura, a fotografia, o cinema, a televisão são suplementos de analogia. Assim como a informática, mas esta vai além.

A questão materialidade-imaterialidade
“... de início poderíamos ver aqui também uma progressão quase contínua e unilateral, na sucessão dos sistemas, de uma desmaterialização crescente da imagem, que se tornaria cada vez mais ´objetal´ e mais ´virtual´. (...) Veremos, porem, mais uma vez que este esquema teleológico é extremamente redutor e que devemos absolutamente dialetizá-lo, evitando a confusão entre os terrenos estéticos e tecnológicos. (...) a imagem da pintura é, entre as que nos ocupam aqui, aquela cuja materialidade é mais diretamente sensível. (...) Para que quer que tenha não só visto, mas também tocado um tela com a mão, sentido sua espessura e sua consistência, sua lisura ou sua rugosidade, não há dúvida: a pintura atinge um extremo de materialidade concreta, tátil, literalmente papável. (...) Comparativamente, a imagem fotográfica, objeto múltiplo ou ao menos reprodutível, possui certamente menos relevo e menos corpo. Sua tactilidade é uma questão não tanto de material figural quanto de objectualidade figurativa. (...) a foto é um objeto físico, que pode pegar nas mãos, apalpar, triturar, carregar, dar, esconder, roubar, colecionar, tocar, acariciar, rasgar, queimar, etc. Não raro, existe mesmo uma certa intensidade fetichista nos usos particulares que se pode fazer deste objeto, frequentemente pequeno, pessoal, íntimo, que possuímos e que nos obseda” (p. 60-61).
“É com o cinema que este caráter ´objetal´ da imagem vai se atenuar claramente, até quase desvanecer. Com efeito, a imagem cinematográfica pode ser considerada duplamente imaterial: de um lado, enquanto imagem refletida; de outro, enquanto imagem projetada. (...) podemos até tocar ou atingir a matéria da tela (rasgá-la, manchá-la, cobri-la, arrancá-la, colori-la...), nem por isso conseguiremos atingir a imagem, que permanece, para além de seu suporte material, uma entidade fisicamente distinta, e inacessível às mãos do espectador” (p. 61-62).
A segunda impalpabilidade da imagem cinematográfica é referente á projeção. “... a imagem que o espectador crê ver consiste não apenas num reflexo, como também numa ilusão perceptiva produzida pelo desenrolar da película a 24 imagens por segundo. O movimento representado (de um corpo, um objeto, etc.) , tal como o vemos na tela, não existe efetivamente em nenhuma imagem real. A imagem-movimento é uma espécie de ficção que só existe para nossos olhos e nosso cérebro. Fora daí, ela não é visível – é uma imagem tão imaginada quanto vista, tão subjetiva quanto objetiva. No fundo, a imagem de cinema não existe enquanto objeto ou matéria” (p. 62-63).
“Com a imagem da tela catódica (da televisão e do vídeo), este processo de desmaterialização parece se acentuar ainda mais, e de maneira muito clara. Se a imagem do cinema pode ser dita duplamente imaterial quando a observamos na tela, o espectador não deixa de saber que, na sua base (isto é, no projetor e na cabine), existe uma imagem prévia, ela sim dotada de imaterialidade: o filme-película. (...) Com a imagem eletrônica da televisão e do vídeo, que é também uma imagem-movimento que passa numa tela, esta realidade ´objetal´ de uma imagem material, que seria visível na sua base, desapareceu. Não existe mais imagem-fonte. Não há mais nada pra se ver que seja material (paradoxo de algo intitulado justamente vídeo – ´eu vejo´)” (p. 63).
 “... enquanto o cinema ainda dispunha, em sua base, do elementar fotograma (sua imagem de base ainda era uma imagem), o vídeo não tem nada a oferecer como unidade mínima visível além do ponto de varredura da trama – algo que não pode ser imagem e que nem se quer existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe no espaço, mas apenas no tempo. (...) Sem corpo nem consistência, a imagem eletrônica só serve, poderíamos dizer, para ser transmitida” (p. 64).
“... com os sistemas de imagens ligados à informática e produzidos por computador, o processo de desmaterialização parece atingir seu ponto extremo. Em primeiro lugar, enquanto imagem visualizável numa tela, a imagem de computador é comparável à imagem eletrônica do vídeo (tela fosforescente, varredura de uma trama por um feixe de elétrons etc.). (...) Além disso, antes deste lugar de visualização final que é a máquina da tela, a imagem informática é, como sabemos, uma imagem puramente virtual. Ela se limita a atualizar uma possibilidade de um programa matemático, e se reduz em última análise a um sinal, nem mesmo analógico, mas numérico, ou seja, a uma sequência de algarismos, a uma série de algoritmos. Estamos longe da material-imagem da pintura, do objeto-fetiche da fotografia, e mesmo da imagem-sonho do cinema que vem de um fotograma tamgível. A imagem informática é menos uma imagem que uma abstração. Nem mesmo uma visão do espírito, mas do produto de um cálculo” (p. 64-65).
“Daí provavelmente, como um reflexo compensatório, o desenvolvimento particular neste domínio de tudo que concerne à reconstituição de efeitos de materialidade. Esta parece fazer tanta falta em informática que acaba provocando uma espécie de hipertrofia do tato.” O autor cita então: o controle remoto; o mouse; o teclado; as “telas táteis”. (...) Foi sobretudo nas pesquisas acerca da chamada ´realidade virtual´ que se afirmou esta corrida ruma a uma (falsa) materialidade do tato.” Os capacetes de visão; luvas de dados; e sensores.
“É o triunfo da simulação, em que a impressão de realidade dá lugar a impressão da presença, e o usuário experimente a simulação como um real. Neste universo, não só a imagem perdeu o corpo, como também o próprio real, inteiro, parece ter-se volatilizado, dissolvido, descorporificado numa total abstração sensorial” (p. 66).
“Hipertrofia do ver e do tocar, por parte de um sistema de representação tecnológica que carece cruelmente de ambos, por ter dado as costas ao Real. As telas se acumularam a tal ponte que apagaram o mundo. Elas nos tornaram cegos pensando que poderiam nos fazer ver tudo. Elas nos tornaram insensíveis pensando que poderiam nos fazer sentir tudo” (p. 67).



DUBOIS, Philippe. Máquinas de imagens: uma questão de linha geral. In: DUBOIS, Philippe Cinema, Video, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Págs. 31 – 67.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Culturas e Artes do Pós-Humano


Lúcia Santaella

1.    Qual é a relação entre a seguinte passagem do texto de Santaella e o conceito de arte tecnológica exposto no texto de Martin Heidegger “The question concerning technology”?

“Nessa medida, a arte tecnológica se dá quando o artista produz sua obra através da mediação de dispositivos maquínicos, dispositivos estes que materializam um conhecimento científico, isto é, que já têm uma certa inteligência corporificada neles mesmos.”

A diferença apresentada por Heidegger entre a técnica pré-industrial e a técnica moderna, também entendida como tecnologia, está na presença do conhecimento científico nesta última. Ou seja, a tecnologia está fundamentada na ciência moderna, tem como base os avanços das ciências originários no século XVII. Dessa forma, o desvelamento da verdade (poiesis) como uma forma de existência do homem no mundo potencializada pela técnica, apresenta-se, após a revolução industrial, com base no conhecimento científico, na capacidade de ampliação da ação e produção do homem.

A arte tecnológica ocorre a partir da fusão da técnica com a ciência. Conforme a passagem do texto de Santaella, e considerando a afirmação de Machado sobre as relações cada vez mais estreitas entre imaginação artística, investigação científica e invenção tecno-industrial, podemos inferir que a partir do momento em que o artista compreende e busca amplificar a “inteligência corporificada” atribuída por Santaella aos dispositivos máquinicos, que são utilizados nos processos de criação (elaboração e produção) artística, a arte pode ser entendida como uma possível saída do processo de “Gestell”.

“(...) a arte produzida no coração das mídias e das tecnologias colocam os artistas no centro das engrenagens de poder, ao mesmo tempo em que afetam diretamente os modos de produzir e consumir, de comunicar e controlar da sociedade como um todo. Aquele que hoje se propõem exercitar o imaginário a partir de instrumentos, processos e suportes colocados pelas tecnologias de ponta devem estar preparados para enfrentar as regras de mercado, as instituições de controle e gerenciamento de recursos; devem também saber exatamente até onde podem ceder ou abrir mão de sua liberdade, sem comprometer a radicalidade de suas propostas” (MACHADO, 1993, p. 32).

Heidegger indaga sobre a importância ou possibilidade de não tratarmos a técnica como mero meio, alertando para o fato de que não está errado tratá-la como determinação instrumental, mas ainda que seja correta a determinação instrumental da técnica, isso não nos mostra sua essência - ou a verdade.
  

domingo, 23 de dezembro de 2012

Máquina e Imaginário


Arlindo Machado
 1.    O que o autor define como as estéticas informacionais?
Visavam construir modelos matemáticos rigorosos, capazes de avaliar a informação estética contida num objetivo dotado de qualidades artísticas. Tinha como meta aplicar à produção artística princípios formulados na confluência da teoria da informação com a cibernética.

2.    Em que sentido o autor aplica o mesmo raciocínio de Walter Benjamin sobre a fotografia e o cinema em relação à arte produzida com recursos tecnológicos?
Que o importante é perceber que a existência das obras a partir do uso dos novos recursos tecnológicos colocam em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fenômeno artístico, exigindo novas formulações diante das transformações que estão ocorrendo, de uma nova situação.
 “As novas tecnologias introduzem diferentes problemas de representação, abalam antigas certezas no plano epistemológico e exigem a reformulação de conceitos estéticos” (p. 24).

3.    Comente as seguintes passagens a respeito da relação da arte com a tecnologia:
“Podemos considerar a relação da arte com a tecnologia como um casamento marcado por períodos de harmonia e de crises conjugais” (P. 24).
O autor faz referências à concepção grega da arte vinculada à palavra téchne, de tecnologia, que representa qualquer prática produtiva sem distinção entre arte e técnica, o que perdurou até o período renascentista.  As atividades artísticas estavam estreitamente relacionadas aos avanços científicos no Renascimento. Diversos artistas adotavam e desenvolviam princípios com base na matemática e na física, por exemplo, para realizarem seus trabalhos, que não ficavam restritos a pinturas e esculturas. “... a máquina torna-se modelo conceitual para explicar e representar o universo físico natural” (p. 25).
O autor argumenta que a arte do século XX encontra-se em sintonia com os saberes e questões do seu tempo, assim como no período da arte grega, fazendo referências a diversos movimentos artísticos do início do século passado.
Machado afirma que: “Exposições recentes dedicadas ao tema das relações entre arte e tecnologia (...) demonstraram que se torna cada vez mais difícil fazer uma distinção categórica entre objetos originários da imaginação artística, da investigação científica e da invenção tecno-industrial” (p. 25).
E acrescenta apontando para o fato de que importantes centros de pesquisa estética na contemporaneidade são localizados em institutos de pesquisa tecnológica ou científica.
No entanto, o “divorcio” ocorreu no Romantismo, com os conceitos de genialidade individual e o papel do imaginário na arte. A partir desse conflito a arte torna-se autônoma e institucionalizada, o que deu início ao processo de especialização durante o século XVIII e foi fundamental para definir o novo “contrato matrimonial entre arte e tecnologia”, onde passam a ser partes distintas. A adoção de uma “postura sem submissão e sem papeis fixados na relação” foi a grande contribuição do romantismo para a arte em relação às tecnologias.

“Toda arte produzida no coração da tecnologia vive, portanto, um paradoxo e deve não propriamente resolver essa contradição, mas pô-la a trabalhar como um elemento formativo” (p. 28).
A arte não precisa e não pode ficar sujeita a procedimentos de padronização, de ordenamentos precisos e sem improvisação. “A arte é indiferente a qualquer tecnologia”, se alimenta e se realiza em processos de liberdade do imaginário, de certo grau de imprevisibilidade e ludicidade, de muita criatividade e autenticidade.
“(...) a arte produzida no coração das mídias e das tecnologias colocam os artistas no centro das engrenagens de poder, ao mesmo tempo em que afetam diretamente os modos de produzir e consumir, de comunicar e controlar da sociedade como um todo. Aquele que hoje se propõem exercitar o imaginário a partir de instrumentos, processos e suportes colocados pelas tecnologias de ponta devem estar preparados para enfrentar as regras de mercado, as instituições de controle e gerenciamento de recursos; devem também saber exatamente até onde podem ceder ou abrir mão de sua liberdade, sem comprometer a radicalidade de suas propostas. Em contrapartida, sua arte, longe de se confinar em museus, galerias ou salas de concerto, se fará penetrar em todos os lugares, difundindo-se por ondas eletromagnéticas ou por cabos telefônicos e ampliando ao infinito através dos satélites de comunicação. Pode-se dizer que essa arte tende a perder em concentração, estilo e refinamento, o que, por outro lado, ganha em amplitude, penetração e alcance social.” (p. 32)

4.    Comente o pensamento de Villém Flusser sobre o papel do artista na era das máquinas que foi exposto pelo autor:

O termo “funcionário da transmissão”, usado por Flusser sobre o papel do artista na “era da automação”, de certa forma, e como também está sendo tratado no texto, não fica restrito a esse período de desenvolvimento e apropriações intensas das tecnologias. No momento em que o artista é “contratado” ou recebe uma encomenda, por exemplo, na maioria das vezes sua criação fica restrita a um propósito ou contexto específico, são impostas limitações à sua criação. Ainda assim o artista lança mão de sua autonomia e de sua capacidade criadora e técnica para se expressar, mesmo diante dessas condições. E essas limitações  que podem ser diversas, por exemplo, tanto em relação aos instrumentos ou recursos disponíveis como em relação ao tema ou condições específicas, não impossibilitam o trabalho artístico.
Acredito que os artistas, e em grande medida os cientistas, sempre se apresentaram como os responsáveis (direta ou indiretamente) por vislumbrar novas possibilidades ou apontar novos caminhos. Desenvolvem seus trabalhos considerando não somente as perspectivas que se apresentam de forma objetiva e que estão postas ou impostas, buscam o que está além, o devir. Nesse sentido, independente do contexto atual, de certa necessidade de utilização de recursos tecnológicos e das condições impostas pelo sistema complexo de desenvolvimento no processo de criação artístico, o artista continua sendo (talvez de forma mais acentuada e em condições mais adversas) fundamental no processo de transgressão e exercício de liberdade, de vislumbrar novas possibilidades.

5.    A partir da leitura da seguinte passagem, discuta como o paradoxo mencionado na questão 3 está relacionado com o papel do artista.
“Sem a intervenção desse imaginário radical, as máquinas sucumbem nas mãos dos funcionários da produção, que não fazem senão preenchê-las com “conteúdos” de mídias anteriores, repetindo em linguagens novas soluções já cristalizadas em linguagens mais antigas” (p.28).
Que diante dessas mudanças, da intensificação e mesmo imposição no uso das novas tecnologias, é fundamental o desenvolvimento de projetos culturais e estéticos que ampliem as possibilidades dos novos meios para propor e enriquecer o universo cultural. Não podemos ficar restritos ou submissos aos aspectos simplesmente técnicos dos equipamentos, assim como das constantes “novas” descobertas tecnológicas. E os artistas podem ser decisivos nos processos de criação e novas formas de percepção do mundo a partir desses avanços (ainda que sujeitos às imposições da indústria, dos dispositivos tecnológicos e do mercado).

6.     O que seriam as máquinas semióticas defendidas pelo autor?
São máquinas dedicadas á tarefa de representação.

7.    O autor aponta pelo menos duas limitações que comprometem a argumentação dos críticos da fusão arte/tecnologia. (p.36) Explique cada uma delas:
Primeira: a crítica aos determinismos da máquina pode ser aplicada a qualquer processo cultural de qualquer tempo. Os artistas sempre estiveram sujeitos, em certa medida, às determinações de sua matéria e às possibilidades de uso de seus instrumentos de trabalho.
Segunda: nem o mais fechado dos sistemas simbólicos pode ser reduzido à medida e determinações de possibilidades. As limitações de manipulabilidades são constatações teóricas, que podem na prática ser expandidas. A imaginação do homem, que cria, desenvolve e usa as máquinas, jamais será passível de restrições ou poderá ser quantificada.

8.    Explique as mudanças ocorridas com a arte tecnológica no que diz respeito ao papel desempenhado pelo autor na criação artística (p.33-44).
As máquinas desempenham um papel fundamental na atividade simbólica do homem contemporâneo, que pode ser mais ampla que as formas de utilização normalmente praticadas.
A evolução técnica não pode ser entendida (ou vista) simplesmente como redutora do campo da criatividade estética e que a máquina (e seus construtores) impõem limites intransponíveis à liberdade de criação artística. Existem, em grande quantidade, os “apertadores de botão” ou “funcionários da transmissão”, que não fazem mais que cumprir e celebrar as promessas das máquinas e as finalidades do sistema industrial. Que os “produtos” desses supostos “artistas” são frutos muito mais das tecnologias das máquinas e dos processos produtivos do que do talento e da capacidade criadora.
No entanto, não se pode afirmar que o artista está condenado ás imposições e limitações das tecnologias.
“A questão principal, enfim, não é saber se o artista se torna menos ou mais livre, menos ou mais criativo trabalhando no coração das máquinas, mas se ele é capaz de recolocar as questões da liberdade e da criatividade no contexto de uma sociedade cada vez mais informatizada, cada vez mais imersa nas redes de telecomunicações e cada vez mais determinada pelas representações que faz de si mesmo através da indústria cultural” (p. 38-39).

9.    Comente as mudanças no estatuto do receptor com o surgimento da arte tecnológica a partir da seguinte passagem:
 “A recepção é, portanto incorporada ao circuito produtivo como um mecanismo de diálogo, responsável pela consistência do produto final em cada uma de suas infinitas manifestações” (p. 40).
Talvez a obra de arte de todos os tempos tivesse como condição subjacente não somente a criação artística individual, mas uma operação dialógica que participam diversos agentes e fatores, e que, de certa forma, o envolvimento dos “receptores de produtos culturais”, ou, de forma talvez inadequada, dos espectadores, sempre foi parte integrante e fundamental para a manifestação artística. Um fator de grande relevância nos artefatos artísticos provenientes dos recursos tecnológicos na contemporaneidade é, sem dúvida, o receptor. “Componente” incluído no processo de produção artística para a efetiva “conclusão” (ou execução e realização) da obra, ou seja, a figura do espectador passivo e observador dá lugar ao “espectador-autor” para a efetivação do artefato artístico. A experiência que o artista e o “espectador” (agora participante) vivenciam juntos com a obra de arte seria um pressuposto na Arte Digital, o que está inserido nas definições e atributos da media art, assim como a utilização das novas tecnologias.
Se a arte até certo momento privilegiou uma postura quase que simplesmente contemplativa tanto do artista como do público, os movimentos de busca por novas formas de manifestação e expressão a partir do final do século XIX - mas principalmente no início do século XX - incitaram ou promoveram criações que estivessem voltadas para a nossa capacidade reflexiva, indagadora, cognitiva e participativa. O que, até certo ponto, possibilitou a ampliação do sentido de arte, das produções artísticas que surgiram a partir de então, especialmente em conexão com os avanços tecnológicos.
Acredito que o posicionamento de Lygia Clark, em meados nos anos de 1960, sobre o papel do artista, considerando as transformações dos movimentos e conceitos que ela vivenciara de forma teórica e prática como artista, traduz em grande parte o que seria a Arte Digital, ou seja, dar ao participante (que era até então somente observador) um papel fundamental no objeto de arte, o objeto só passa a ser importante com o envolvimento do participante, que será, então, um “espectador-autor”.

MACHADO, Arlindo. “Máquina e Imaginário”, in Machado, Arlindo (1993). Máquina e Imaginário: O desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A CRÍTICA DA TÉCNICA E DA MODERNIDADE EM HEIDEGGER E MCLUHAN


José Carlos Vasconcelos e Sá

No artigo “A Crítica da Técnica e da Modernidade em Heidegger e McLuhan”, José Carlos Vasconcelos e Sá faz uma análise das teorias de Haidegger e McLuchan acerca da modernidade e da instrumentalidade da técnica, especialmente envolvendo a comunicação mediada pelas tecnologias. Trata-se de teorias críticas apresentadas por dois autores de grande notoriedade abrangendo os problemas provenientes de uma concepção e de uma utilização equivocadas dos aspectos envolvendo as tecnologias na modernidade.

“A experiência da modernidade é inseparável do esforço para reconceptualizar a lógica de mediação das relações entre os seres humanos e a natureza e entre a natureza e os objectos que os seres humanos produzem. (...)o. A procura de figuras da mediação é, assim, sinônimo da procura de um caminho, de uma orientação que permita estruturar e estabilizar visões do mundo organizadoras da experiência.” (p. 124)
“Para alguns, as ‘máquinas de comunicar’ seriam um mero suporte da interacção, constituindo um conjunto de instrumentos que não se distinguiriam das utensilagens pré-modernas. (...) O postulado desta tese é a ideia  de  que  a  mediação  constitui  ainda  um  sector  bem  definido entre  sujeitos  mediados  por  tecnologias.  Por  outro  lado,  é  neste mesmo pressuposto que se baseia a opinião, amplamente difundida, de que a mediação é equivalente à linguagem.” (p. 125)
“No entanto, a mediação pela palavra - que emerge, agora, como uma palavra ‘razoável’, dialogante, integrada numa ‘lógica do preferível’, geradora de consensos - obscurece uma outra realidade que marca decisivamente as sociedades tardo-modernas: a questão da tecnologia.” (p. 125)
O autor argumenta que a tecnologia é frequentemente concebida como neutra e como passível de controle pelo sujeito. No entanto alerta para o fato se tratar de uma tecnologização da comunicação, que nos escapa ao controle e impõe novas formas de mediação, num processo de “maquinação do sujeito”. Essa falta de entendimento, que seria inevitavelmente uma forma de instrumentalidade da técnica, pode resultar na incapacidade de exploração de possibilidades.

HEIDEGGER: ‘A ESSÊNCIA DA TÉCNICA NÃO TEM ABSOLUTAMENTE NADA DE TÉCNICO’
De acordo com José Sá, Heidegger é um dos principais pensadores do século XX que insistiu na importância da técnica para a compreensão da modernidade, e que sua formulação mais completa se encontra no texto de 1954 intitulado ‘A Questão da Técnica’ (Heidegger 1958: 9-48).
“A sua tese essencial é a de que a metafísica levou ao esquecimento do Ser e, correlativamente, que a metafísica realizada  é  a  modernidade.  A  interrogação  da  tecnologia  em Heidegger provém, assim e de forma intrínseca, da crítica da modernidade, a partir do ponto de vista ontológico.” (p. 126)
“A ênfase da crítica heideggeriana é a recusa da visão instrumental da tecnologia, isto é, a tecnologia como um meio neutral de que se serviriam os seres humanos para transformarem o mundo - o que implica uma crítica paralela de uma visão do mundo como uma espécie de matéria prima do trabalho que age sobre ele com os seus instrumentos, transformando-o.” (p. 126)
Para Heidegger, segundo José Sá, a técnica deve ser concebida como uma forma de aletheia, de verdade. “A essência da tecnologia moderna deve ser percebida como um processo de des-ocultação da natureza com um carácter especial de provocação relativamente a ela.” (p. 126)
Heidegger estabelece dois tipos de tecnologia:
1) “A tecnologia anterior à Revolução Industrial, profundamente envolvida com a natureza e servindo-se da natureza, mas essencialmente dependendo dela, no sentido de que da natureza só transfere força e movimento” (p. 126-127). Heidegger cita como exemplo os moinhos de vento como um tipo de tecnologia que envolve e coopera com a natureza.
2) “Em contraste marcante com o modelo tecnológico anterior, surge, com a Revolução Industrial, uma prática e concepção tecnológica substancialmente diferente. (...) A tecnologia moderna, regida por processos que se relacionam com a descoberta, transformação, acumulação e distribuição, constitui, assim, um modo de desocultamento substancialmente diferente daquele dominante nas tecnologias pré-industriais” (p. 127). O exemplo desta vez é a central térmica movida a carvão, que ao contrário do modelo anterior, extrai energias físicas básicas e imediatamente as acumula em abstrato, de forma não sensível. Neste caso específico, de forma distinta à exploração da natureza, a energia acumulada é extraída em forma de carvão, que é transformada em eletricidade, que pode ser rearmazenada e preparada para ser distribuída e usada segundo a vontade humana. Heidegger ainda apresenta uma crítica da estética, que para ele é inseparável da crítica da técnica, sendo a arte uma forma de aletheia também. “O exemplo que fornece é o da central eléctrica que não se harmoniza nem complementa a paisagem, perdendo, assim, a característica que aproximava os objectos tecnológicos ‘antigos’ das obras de arte.” (p. 127)
A “moderna tecnologia”, nesse entendimento de Heidegger, gera um mundo de objetos sem valor em si, a não ser pelo uso que se lhes possa dar, o que ele chama de bestand. O que resulta em uma distinção em relação ao processo técnico tradicional, que fabricava objetos únicos.
O autônomo relativamente ao humano, denominado de Gestell, a pré-condição transcendental da tecnologia, é a concepção de Heidegger da essência da tecnologia. Seria a “dimensão da tecnologia moderna que ordena ou rege o modo particular deste desocultamento” (p. 127).
“Esta disposição é entendida como uma estrutura cognitiva impessoal ou uma vontade impessoal que não só provoca o mundo, mas, também e essencialmente, incita os seres humanos, de maneira sistemática, precisa e constante, a provocar o mundo. A acção desta vontade impessoal desoculta sempre, da mesma forma, a natureza” (p. 128).
Disso resulta a visão forte de Heidegger entre tecnologia e Ser: “o desaparecimento do desocultamento em si acarreta, juntamente, o desaparecimento daquele no qual a verdade acontece, isto é, o próprio Ser. O processo de desocultamento da tecnologia é o movimento que leva a ‘fechar’ a natureza no mesmo e, simultaneamente, ao iludir a verdade das coisas, obrigar o Ser à sua não-revelação” (p. 128).
Heidegger procura demonstrar o equívoco da filosofia ocidental em considerar a técnica como algo neutro e passível de controle.
No entanto, como alerta José Sá, “... algumas reservas têm vindo a ser levantadas a esta análise, dizendo respeito, nomeadamente, à exclusividade da visão ontológica em detrimento da dimensão antropológica. Por exemplo, para Dominique Bourg (1999), o menosprezo das realidades empíricas e sociais - que considera patente na análise heideggeriana - tem consequências  marcantes, em particular consequências políticas.” (p; 128).
Mas Heidegger mantêm-se atual no cenário analítico contemporâneo em relação à técnica e à cultura, em que “a técnica não pode ser simplesmente apreendida do ponto de vista do controle e da instrumentalidade” (p. 129).

McLUHAN: ‘O MEIO É A MENSAGEM’
Em Marshall McLuhan, a crítica da técnica e da modernidade parte da análise dos mass media e das relações destes com as mensagens que veiculam.
“A proposição fundamental do pensamento teórico de McLuhan é que os media sobredeterminam a palavra e o seu sentido. Esta é a tese por detrás da formulação, hoje proverbial, ‘The media is the message’, que se tornou um lugar comum interpretativo da cultura de massas” (p.129). Mas para José Sá a teoria de McLuhan merece novos olhares críticos.
O autor destaca que existem diferenças entre a teoria de McLuhan e a de Heidegger, onde o primeiro teve a influência dos estudos literários e da teoria da comunicação. MaLuhan desenvolveu estudos sobre Chesterton, e através dele que “... se envolve na análise crítica do movimento moderno representado por Joyce, Pound, Elliot, entre outros, com os quais partilha a mesma visão do mundo que podemos sintetizar como sendo inerentemente crítica em relação ao positivismo e ao cientificismo dominantes, posição que vai determinar a sua recusa da ideia de progresso exclusivamente orientada pelo desenvolvimento técnico” (p. 130).
Porém, como adverte José Sá, da mesma forma que a técnica é recriminada, também é “objeto” de fascínio, é vista como um instrumento que pode dignificar a existência humana, o que resulta em uma relação ambígua entre técnica e mística, progresso e sentimento. “... assim, na primeira fase da carreira intelectual de McLuhuan, uma nítida posição crítica em relação à tecnologia e à ciência que o século XX, pelo menos na primeira metade, veio a desenvolver (...) McLuhan pertence àquela constelação de pensadores modernos que mantêm relativamente à tecnologia uma relação de fascínio ambíguo que nunca permite um distanciamento definitivo.” (p. 130).
A partir de uma análise sistemática de Allan Poe, “... McLuhan acaba por repudiar as atitudes simplificadas de indignação ou de recusa, em favor da vigilância produtiva face à técnica” (p. 131).
“Esta viragem crítica está bem patente, na fase seguinte, num dos seus primeiros estudos sobre a comunicação de massas – The Mechanical Bride. É a partir deste texto que McLuhan passa a reconhecer que a cultura de massa está não apenas cheia de potencialidades de destruição, mas também de promessas de fecundos  desenvolvimentos” (p. 131)
McLuhan desenvolve estudos sobre os anúncios de publicidades fazendo considerações em relação à arte de vanguarda.
“...a reapreciação da cultura pop levou McLuhan a elaborar um conjunto de teses, segundo as quais os processos comunicacionais estariam estreitamente ligados às tecnologias dominantes em cada época” (p. 132). Com influência direta, especialmente, de Harold Innis, que era economista canadiano responsável pela tese segundo a qual a principal força de transformação social poderia ser encontrada nas várias revoluções que haviam ocorrido nas tecnologias e, especialmente, nas tecnologias da comunicação.
A partir dessa perspectiva, McLuhan formula a hipótese que iria desenvolver na sua investigação sobre os media. “Os meios de comunicação afectam a experiência e, através dela, toda a cultura, mais profundamente que as mensagens” (p. 132).
“McLuhan articulou uma série de questões que constituem os aspectos centrais da análise que levou a cabo sobre os media, a saber: de que maneira os meios de comunicação influenciam as mensagens? Que aspectos do humano são afectados pelos meios de comunicação? Que relação existe entre os media e o homem? Por que razão determinadas épocas legitimam certos meios e não outros?” (p. 132)
As respostas para essas perguntas fizeram de McLuhan um autor incontornável da cultura da segunda metade do século XX, articulando de modo original, comunicação, mediação, tecnologia e cultura. O que fez “... corresponder a cada época histórica um meio cultural de comunicação específico, distinguindo uma série de categorias, das quais podem ser destacadas três dimensões ou conjuntos históricos, técnicos e comunicacionais” (p. 132):
1) “A Dicotomia Oral/Escrito” – para McLuhan, o encantamento imaginativo proveniente das trocas orais foi quebrado com a invenção da escrita, pois o canal da audição é mais rico que o da visão.
2) “O Surgimento dos Tipos Móveis – A Imprensa” – com a imprensa mecanizada, de acordo com McLuhan, o empobrecimento provocado pela escrita aumentou. A orquestração sensitiva da tradição oral se perde ao ser substituída pela linearidade das letras impressas e a regularidade da página. “... o sujeito fechou o seu espírito a possibilidades mais amplas de expressão imaginativa. (...) o sujeito moderno condiciona-se a aceitar, inadvertidamente, a tirania desumanizadora da vida mecânica” (p. 133).
3) “A Era Electrónica” – numa visão otimista, McLuhan concebe a era electrónica como algo que permite aos seres humanos pensar em conjunto, “através de um meio tecnológico constituído à sua imagem e semelhança. A rede electrónica voltou, desta forma, a tribalizar o homem moderno, dominou as influências desintegradoras da imprensa e recolocou o humano na dimensão da ‘aldeia global’” (p. 134).
No entanto, “McLuhan foi atacado severamente por muitos, insistindo os críticos na sua unilateralidade, ingenuidade ou excessiva simplificação” (p. 134).
“... a questão importante que interessa compreender é que a mediação se tornou uma dimensão crucial na cultura tardo-moderna da comunicação e da informação, abrindo um campo vasto, acerca do qual McLuhan foi, sob alguns aspectos pelo menos, o pioneiro teórico. Pesou, neste esforço, a ideia fundamental segundo a qual ‘o meio é a mensagem’ e que, bem vistas as coisas, vai à revelia de tudo o que é normalmente aceite na cultura moderna” (p. 134).
Dessa forma, a crítica da técnica e da modernidade, em McLuhan, implica que o conteúdo da mensagem é irremediavelmente modelado pelo meio pelo qual a mensagem é difundida.
Para McLuhan, a mediação é fundamental na cultura moderna. “Se vivemos apenas no ‘meio’, a nostalgia das origens e os projectos finais têm de ser reinterpretados. Não estão nem aquém, nem além do espaço da mediação, sendo sim uma figuração estratégica dela própria” (p 134).
José Sá então cita Régis Debray (1991, 1995) como uma dos principais autores contemporâneos envolvidos com as questões da mediação, que procura delimitar uma teoria da “mediologia”. Nos chama a atenção para o fato de não confundir a mediação com os media, enquanto máquinas de comunicar. Nesse sentido, é necessário analisar como uma ideia se torna força material pelas mediações, os ‘media’ como um prolongamento “particular, tardio e intrusivo”.
“Para Debray, ela entra mesmo em catástrofe com o crescente peso da imagem, na qual se encadeia directamente o desejo, abolindo toda a distância. Esta visão é abundantemente ilustrada pela imagem do ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque, difundidas até à exaustão pelas cadeias de televisão de todo o mundo. Como diz Debray (1995: 192): ‘O ícone é um objecto amável e dinamizante, a feminitude da imagem e a guerra das imagens devem ser consideradas – ou se perdem – juntas’” (p. 135).
“A articulação entre as práticas críticas de Heidegger e McLuhan pode ser enfatizada, em particular, nesta necessidade de libertar a mediação das formas tecnológicas tradicionais que, tal como as formas clássicas de análise crítica, já entraram em crise. A resposta a dar à cultura passa pelo reconhecimento, como disse, em algum lugar, G. Agamben, de que tudo se joga ‘em exibir uma medialidade, em tornar visível um meio como tal’, o que passa por ir além da instrumentalidade e da ilusão de controle” (p. 136).
“A reunião dos pensamentos de Martin Heidegger e Marshall McLuhan nesta análise é, assim, destinada a tornar visíveis as correlações analíticas entre a afirmação da autonomia da técnica sobre a criação (Heidegger) e da autonomia do meio sobre a mensagem (McLuhan). Ambas as posições são investidas numa crítica da visão predominante da instrumentalidade ou da natureza  puramente instrumental da técnica. Estas questões são orientadas para o modo como a superação da visão instrumentalista afecta a relação entre mediação, comunicação e cultura. Se esta realidade já era clara na época dos mass media e de McLuhan, é hoje  incontornável, na disseminação das culturas virtuais e do ciberespaço” (p. 137).